Atlântida esquecida? Oh, que saudades que eu tenho!

As imagens/memórias em destaque são recriações arquivadas no repositório de meu subconsciente

Atlântida esquecida? Oh, que saudades que eu tenho! Foto: Arquivo pessoal  Notícia do dia 12/12/2022

Fátima Guedes*

 

Saudosismo?! É provável. Vez por outra, a tela panorâmica das memórias exibe filmes bastante familiares. Do ponto de vista crítico narrativo: impressionismo fictício ou sinestesia realística?!

 

Em princípio, as imagens/memórias em destaque são recriações arquivadas no repositório de meu subconsciente: conforme o estímulo, emergem cristalinas permitindo-me estabelecer paralelos (embora antagônicos) entre o ontem e o hoje de nossa inesquecível Vila Amazônia* - colo e abrigo até minha adolescência. Não deixa de ser uma Atlântida esquecida na memória de criadores de histórias para ninar caboco tolo.

 

Oh, que saudades que eu tenho!

Da escola Santa Maria onde ensaiei as primeiras letras, onde aprendi somar as partes, subtrair códigos diferenciais, multiplicar o todo pelas partes e dividi-las igualmente. Lateja entre as saudades, a figura altiva e delicada da Professora Iracema Ferreira, embora esquecida nos registros oficiais, seu legado retumba nas práxis daquelas e daqueles que saciaram sedes de conhecimentos básicos e fundamentais.  

 

Oh, que saudades que eu tenho!

De Dona Tila, Minha Mãe, a sabedoria nata, indecifrável que trouxe aos filhos a base fundamental da leitura, da escrita e da autonomia... Quanta saudade do Meu Pai, o Velho Guedes, tradutor por excelência dos mistérios das matas, do sussurro dos rios, do urro das onças - amigas/irmãs-, como carinhosamente as tratava. Velho Guedes é um mito que sobrevive anônimo nos recantos mais longínquos do município de Parintins. Da Serra ao Paurá*, cada veio de estrada ou de rio conserva suas pegadas. No entanto, a miopia do poder alienante não vislumbrara e até apagara de uma escola daquela Comunidade o nome deste Personagem Imortal. Porém, fica a certeza: a práxis semeada pelos compromissos éticos do Sr. Otávio Guedes de Araújo são digitais indeléveis entre aqueles e aquelas que se desafiam cotidianamente construir mundos possíveis e dignos para todos os seres indistintamente.

 

Oh, que saudades que eu tenho!

Da assistência médica e hospitalar oferecida pelo imortal Dr. Todda em cujos atendimentos, saúde era direito sagrado, inalienável, sem distinção de classe, gênero, crenças e sempre ao alcance da comunidade e de municípios vizinhos. A fitoterapia era a prioridade oferecida: a maioria produzida no laboratório do próprio Hospital com apoio dos técnicos/irmãos Nazaré e Alcino Ferreira - ambos preparados pelo próprio Todda. A fonte mantenedora daquele espaço de saúde provinha da família do comendador Agesislau de Araújo, proprietário da Vila. Os atendimentos aconteciam a qualquer hora. Às quartas-feiras, Dr. Todda prestava atendimento no antigo Hospital do SESP (Serviço Especial de Saúde Pública), situado à rua Silva Campos. Nos primeiros anos, o traslado Vila Amazônia/Parintins/Vila Amazônia era feito de canoa e remo sob o comando do senhor Açúcar Preto, assim conhecido por conta da origem africana. Equipado dos instrumentos profissionais e protegido por um guarda-chuva o Médico enfrentava semanalmente os banzeiros além de outros desafios. Posteriormente, o senhor Baltazar Teixeira (Tatá Teixeira) assumira a condução do Médico através do barco Progresso. Um registro importante: a filha mais velha de Todda chamava-se Amazônia em homenagem à Comunidade em destaque. Hoje, tudo parece um sonho... Dr. Todda é uma lenda. Do hospital azul e branco nada restou. Sobre aquele espaço amoroso de cuidados, impõe-se um centro de catequização de vidas e almas...

 

Oh, que saudades que eu tenho!

Da Colônia Agrícola Japonesa, modelo legítimo de agrovila, cuja caracterização não se media por atuações abstratas, mas via diálogos a valores culturais e a necessidades comunitárias. In loco procuro materialidades que provem aos meus filhos, netos, ex-alunos e a novas militâncias a presença marcante da cultura oriental entre nós cabocos! Nada!... Restam, na descida/subida da Piranha* fantasmas (de plantão permanente) assombrando invasores, ladrões de almas, consciências e terras.

 

Oh, que saudades que eu tenho!

Da Festa de São Francisco Xavier caracterizada pela religiosidade ingênua e pura dos nativos habitantes. Recordo a seriedade de minha primeira comunhão: vestida de branco, véu e grinalda, suportei silenciosamente durante todo um cerimonial a dor insuportável de calos produzidos nos calcanhares por conta dos sapatos (pelica de ovo) presente de meus padrinhos: comendador Agesislau de Araújo e Dona Neuza. Na preparação à primeira eucaristia, a maior dificuldade residia nas prescrições do jejum e abstinência. Não era nada fácil observar tais preceitos, considerando-se a fartura em que viviam nossas famílias e a de nossos contemporâneos. Não se ouvia falar sobre cesta básica...

 

De real e de concreto, as figuras débeis e pálidas dos comunitários da Vila Amazônia atual (arquétipos da desnutrição, da fome, do analfabetismo) refletem o pecado mortal materializado em injustiças sociais sob preceitos classistas cultivados por servos inúteis: dominai tudo sobre a terra...  Gênesis 1:28-31.

 

Oh, que saudades que eu tenho!

Dos dias de lazer no histórico Casal São Joaquim*... Dos jardins bem cuidados, da piscina rodeada de banquinhos de pedra, flores e açaizeiros... As lembranças daquela infância que anos não trazem mais me apertam o coração. Com certeza, projetos gabinetistas mascarados de agrários não a reconstruirão jamais.

 

Oh, que saudades que eu tenho!

Para aquelas e aqueles ainda por aqui, a saudosa Vila Amazônia é mais uma lenda entre tantas outras que adormecem contrariadas* por não terem contemplado a beleza das flores cuja semeadura fora sufocada pela ganância da barbárie capitalista. Em remate: Vila Amazônia fora transformada num forte curral eleitoral cujos rebanhos lascados fingem ser felizes.

 

Oh, que saudades que eu tenho!

Daquelas tardes fagueiras... Das imponentes mangueiras... Da minha terra natal...

Hoje, quando desço o rio Amazonas ou navego pela Boca do Ramos*, diviso ao longe uma paisagem lúgubre, patética, tingida de um verde acinzentado que se esconde na frágil esperança de desfigurados tipos ditos humanos.

 

Perdoe-me, Casemiro de Abreu, o breve plágio... A visão apocalíptica me impõe ousar e desabafar...

 

Oh, que saudades que eu tenho!

Falares da Casa

Adormecem contrariados – expressão do Sr. Otávio Guedes de Araújo, o Velho Guedes, referindo-se às contrariedades da passagem desta vida para outra.

 

Boca do Ramos – entrada do Paraná do Ramos, margem esquerda da comunidade de Vila Amazônia.

 

Casal São Joaquim – propriedade do português Comendador Agesislau de Araújo construída na comunidade de Vila Amazônia, em 1950.

 

Da Serra ao Paurá – referência geográfica sobre os extremos do município de Parintins/Am.

 

Descida/subida da Piranha – trecho acidentado da estrada da Gleba Vila Amazônia. Área habitada pelos japoneses, nos anos 50.

Vila Amazônia – Comunidade rural de Parintins/Am.

 

* Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Uma das fundadoras da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (ANEPS). Autora das obras literárias, Ensaios de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.

 

Casal São Joaquim, casarão que abrigou a Família do Comendador Agesislau de Araújo, primeiro proprietário da Fazenda Santa Maria de Vila Amazônia, após a expulsão dos imigrantes japoneses. Foto: Heitor Costa/Reprodução

 

Pagode Japonês, onde funcionou a escola Santa Maria de Vila Amazônia, após as saída dos imigrantes. Foto: Projeto Koutaku/Reprodução

 

Dona Tila e Otávio Guedes. Foto: Acervo Fátima Guedes

Tags: